sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Mito e História

                                        Mito e História

Jesus Cristo é mesmo um mito. É preciso que se diga, antes de tudo, que o cristianismo nunca foi uma simples religião procedente de gente modesta, como se apregoa. O cristianismo tem outro nome, um nome mais técnico no âmbito da história: nova cultura. É isso mesmo, uma nova cultura que se impôs ao mundo antigo. O surgimento de uma nova cultura tem implicações que fogem às possibilidades de um pequeno grupo de indivíduos simples e bem intencionados. Para se compreender melhor o que se passou é preciso separar a filosofia da história. A filosofia está ligada a necessidade do Homem de superar a si mesmo. A história, por sua vez, depois do iluminismo, pretende se colocar como ciência, investigando e documentando o tortuoso caminho do Homem sobre a Terra. As experiências passadas têm grande utilidade na compreensão do presente e podem servir de referência a um bom encaminhamento do futuro.
Desde o século IV, a nova cultura assumiu a educação e o ensino por intermédio do estado. A história religiosa tornou-se a história oficial e a autoridade religiosa fiscalizava rigorosamente a sua deliberação. Jesus Cristo era uma figura “histórica” e o Novo Testamento a sua fidedigna comprovação. “Somente o colégio dos pastores tem o direito de dirigir e governar. A massa não tem direitos, a não ser o de deixar-se governar qual um rebanho obediente que segue o seu pastor.” Papa Pio X (1835-1914). Hoje, ao homem comum, esta declaração pode parecer extremamente arrogante, mas para o historiador não. O emérito historiador e professor da Sorbonne, Henri Irénèe Marrou (1904-1977), aconselhou aos futuros historiadores: “O historiador não avança sozinho ao encontro do passado. Aborda-o como representante do seu grupo.” Que grupo é esse? A nossa sociedade cristã. O professor Marrou era um fervoroso cristão. Portanto, desde o século IV o ensino e o estudo da história estão submetidos à nova cultura, que já não é tão nova assim.
Toda documentação histórica encontra-se desde aquela época sob a guarda da nova cultura que fez dela o que bem quis. Depois de dois mil anos, é incrível que nada além de Tácito, Plínio o Jovem, Suetônio e Flávio Josefo (reconhecidamente adulterado) puderam ser apresentados? O Talmude é uma obra tardia cuja preocupação era falar mal de Jesus para proteger o judeu menos culto da catequese cristã. Não existe nada a respeito de Jesus nem sobre o chamado cristianismo judeu fora da história cristã. A suposta documentação romana entre 110 e 120, segundo século, chamam atenção pelo contraste que a importância de Jesus assume para posteridade diante da sua inexistência para os registros da época em que supostamente teria ele vivido, assim como pela distância dos “fatos”. “E a sua fama correu por toda a Síria, e traziam-lhe todos os que padeciam, acometidos de várias enfermidades e tormentos, os endemoniados, os lunáticos e os paralíticos, e ele os curava. (Mt 4, 24)E seguia-o uma grande multidão da Galiléia, de Decápolis, de Jerusalém, da Judéia, e de além do Jordão. (Mt 4, 25) Imagine-se esse atendimento no seio de uma população carente de hospitais e cuidados médicos básicos. Nenhum personagem histórico com esse perfil desaparece tão completamente da memória afetiva do meio social no qual ele teria se formado. Isso não existe.
A história foi obrigada a mentir (e continua mentindo) para proteger uma filosofia bonita. Mircea Eliade (1907-1986), um dos mais respeitados historiados da religião, diz que na Antiguidade os deuses pertenciam ao tempo mítico onde nada o precedia. Esse tempo sagrado era resgatado pelo homem religioso nas festas sagradas, quando ele se tornava contemporâneo dos deuses criadores. Mas o cristianismo resolveu inovar o conceito de tempo sagrado, ao afirmar a historicidade de Jesus Cristo. O deus cristão não mais se desenvolveu no tempo primordial como todos os seus predecessores, mas no tempo histórico, no tempo cronológico. Ousadia demais para um simples ato de vontade. Por que então essa inovação? Por causa de uma parte da história que não foi contada, mas nem por isso desapareceu dos livros, como Jesus Cristo das páginas do judaísmo. O poder da cultura dominante é imensurável.
No primeiro século da Era Comum estourou um violento confronto cultural entre gregos e judeus. O motivo disso vinha se avolumando há séculos, porque os judeus se recusavam a participar do ideal universal helenístico que propunha a integração de toda Humanidade num único povo. Eles queriam continuar judeus, praticando as suas tradições e crenças. Não se casavam com estrangeiros nem participavam das festas nas cidades que residiam, cidades gregas, diga-se de passagem. Essa afronta se transformou num ódio e num bem cultural grego. Para os gregos antigos odiar não era feio e era uma obrigação compartilhar do ódio da sua comunidade. Para agravar a situação, no primeiro século os judeus proliferavam assustadoramente e o proselitismo deles ganhava adeptos junto aos gregos menos favorecidos. O perfil da sociedade helênica da Era clássica, no qual as distinções sociais não eram tão perceptíveis, tornara-se muito diferente na Era helenística com o surgimento de classes ricas, cultas e ostentosas por causa da influência do luxo oriental. Os deuses das cidades nada faziam pelos gregos menos favorecidos. Na cultura helênica religião era coisa de mulher e escravo, uma válvula de escape para os segmentos menos favorecidos daquelas sociedades paroquiais. Mas o deus de Israel era diferente. Por intermédio do Antigo Testamento ele prometia bom sucedimento aos que cumprissem as suas leis. Exatamente como é hoje. Jamais os gregos permitiriam que o mundo se tornasse judeu. Eles precisavam reverter àquela situação de qualquer jeito. Sentiam-se de fato e de direito os verdadeiros tutores da Humanidade. A solução foi criar um antídoto contra o judaísmo, forjando um acesso histórico ao direito de utilização do Antigo Testamento. Daí surgiu o judaísmo grego o cristianismo com o seu judeu mitológico (Jesus Cristo) para salvar e unir toda a Humanidade de acordo com o antigo ideal universal helenístico. Não é à toa que a igreja patrística era toda grega, nunca foram encontradas evidências arqueológicas do chamado cristianismo judeu no judaísmo, não existe o nome de um único judeu na alegada transição do cristianismo para o mundo helênico.
A história e a filosofia religiosa tornaram-se quase inseparáveis por estes motivos, reforçados por Agostinho de Hipona com a sua filosofia da história. Jesus Cristo é a fachada de uma filosofia que reúne sabedorias do acervo moral da Humanidade, conquistado à custa de muito sofrimento da espécie humana. É ciência pura, ciência interna. Ciência significa conhecimento e o conhecimento religioso é muito praticado e pouco comentado. Daí os abusos. Não existe uma ciência religiosa e uma ciência profana, aliás, teologia significa “estudo das ciências dos deuses” dos conhecimentos deles. Só se fosse nesse sentido. No entanto, o medo e a sede de domínio acanalharam tudo. Viraram tudo do avesso para impor absurdos. Kosmas Indikopleustes, comerciante de Alexandria que se tornou monge cristão, século VI, inventou que a Terra era plana e quadrada, quando há muito a sua esfericidade era conhecida. Os homens da ciência tinham que reclamar, mas por causa da filosofia bonita eles foram tachados de feios. Assim sendo, até hoje, quem busca o esclarecimento é visto como um inimigo da fé, da família e dos bons costumes. Todavia, logo logo essas paliçadas psicológicas serão desmontadas pela inexorabilidade do tempo. A história é uma ciência que pode reconstruir o passado como a carpintaria pode reconstruir uma casa muito antiga, analisando o tipo de madeira, os encaixes, as marcas de ferramentas etc. e chegar a conclusões surpreendentes sem a intenção de ofender ninguém.

4 comentários:

  1. Obrigado pela sua visita e comentário. Até.

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  2. Desculpe-me por não poder publicar o comentário que você fez ao meu artigo sobre religião no meu blog. Nele você fez menção à forma de adquirir o exemplar de um livro. Isto constitui propaganda. Para tal finalidade, sugiro que você faça uma inscrição no Google Adwords, para que o Google inclua seu anúncio no meu blog.
    Grande abraço!

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  3. Elias Alves, obrigado pela elegância e atenção. Grande abraço.

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