domingo, 17 de agosto de 2014

                    O tempo cobra
                                Cristianismo e ficção


Que o cristianismo seja uma lenda já ficou bem claro, inclusive a muitos cristãos. No entanto, o que falta entrar na cabeça de muita gente é o motivo político da sua origem, que, por sinal, nada tem a ver com Constantino (século IV). A lenda do cristianismo do século I (Jesus Cristo, apóstolos etc.), inventada pelos cristãos do século II (antes não havia), foi a pior desculpa que a nova cultura religiosa poderia ter arranjado em sua pretensão histórica. Essa solução encontrada com o objetivo de sustar a influência e substituir em importância o judaísmo nos primeiros séculos poderia ser cobrada posteriormente com um preço muito elevado aos futuros devotos, exatamente como está sendo atualmente. Fé é uma coisa, história é outra. Posso estar sendo anacrônico no que vou dizer, mas a audácia de terem atribuído uma origem judaica ao cristianismo se explica pela necessidade, contudo, os seus fundadores deveriam saber que um dia isso ia aparecer.

“[...]. Porque não há coisa alguma escondida, que não venha a ser manifesta: nem coisa alguma feita em oculto, que não venha a ser pública”. (Marcos 4: 38-21)

Pior ainda é a fábula estúpida de que Deus teria rompido com os judeus porque estes mataram o seu filho unigênito, O Salvador da Humanidade. Crime mais hediondo não poderia haver. A partir de então, consternado, Deus teria estabelecido uma Nova Aliança com os cristãos e passou a estes o direito aos livros sagrados dos judeus e a responsabilidade da condução da humanidade.
Ora, Jesus Cristo foi inventado pela ortodoxia cristã, basicamente, com o propósito de legitimar esse roubo. Aliás, a ortodoxia cristã muito se empenhou na “historicidade” da personagem no correr dos séculos. Eis o gato escondido com o rabo de fora. Nada mais ridículo do que isto ter sido aceitado como história. A intenção escrachada de insuflar o ódio contra os judeus permeia o Novo Testamento pelo receio de que o mundo antigo judaizasse. Essa é a parte que a história se esqueceu de contar debaixo da tutela cristã. Portanto, o conceito de Deus teve que ser judeu porque este já havia se universalizado nos primeiros séculos e não dava mais para mudar.
           O pensamento marxista muito contribuiu em detrimento de uma visão histórica mais limpa quanto à origem do cristianismo. A ideia de que Jesus personificava um movimento socioeconômico que havia sublevado o proletariado, no século I, e teria sido explorado pelos judeus mais ricos que abusavam dos pobres, é a fantasia política em oposição à religiosa. A história que se danasse, pois não pode se defender sozinha. Entendimento que ainda prevalece nos dias de hoje e só atrapalha a percepção dos fatos.
            Influenciado por tais ideias, um autor que se serve do pseudônimo La Sagesse, cujo e-book circula há muito na Internet, chegou a seguinte conclusão: “Idealizaram o cristianismo que, baseado no primarismo da maioria, deu novo alento ao judaísmo, criando assim, o capitalismo e a espoliação internacional. [...]”. Melhor “ópio do povo” e estratagema dos aproveitadores judeus do que uma farsa histórica que a ninguém interessava.
É aí que alguns, ingenuamente, levantam a questão: Por que os judeus não se manifestaram dizendo que o cristianismo foi uma farsa montada para combater o avanço do judaísmo nos primeiros séculos?
Em primeiro lugar, quem conta a história é o vencedor, e reconhecer (o que não significa aceitar) uma derrota é sinal de inteligência. O judaísmo continuou existindo dentro de sociedades cristãs armadas contra ele e, para aquelas, o importante é que outros não comprometessem sua versão oficial [Bíblia] com indiscrições históricas. Em segundo lugar, é que aquele fervor proselitista do passado derrotado pelo cristianismo, além de ser uma lembrança desagradável, cuja repercussão jamais lhes deu sossego, foi trocado pela opção mais útil do fortalecimento de uma identidade nacional que alimentaria o sionismo político, no século dezenove. Naquela época, a situação dos judeus na Europa se complicava a cada dia, especialmente no leste europeu. Só mesmo com uma identidade poderosa a sustentar uma forte união poderiam enfrentar tal situação.
A lenda da descendência dos hebreus, que embalava seu passado mítico de “povo eleito” de linhagem direta, era conflitante com a realidade histórica, nada magnânima, de convertidos de toda parte que tinham em comum apenas uma prática religiosa. Assim, o proselitismo de outrora se tornou desinteressante, chegando mesmo a ser negado para o bem das “memórias milenares”. Como toda crença religiosa é pura invenção, “Quem tem telhado de vidro não atira pedras no telhado do outro”. Já se dizia. Sem interessar a judeus, cristãos e nem a marxistas essa parte da história caiu no “esquecimento”.
O historiador israelense, Shlomo Sand, comenta que aparentemente por volta do século IV da Era Comum, o rabino Chelbo havia estabelecido o preceito de que “os convertidos são para Israel como a psoríase [incômoda doença de pele]” (Tratado Yevamot). Já no Talmude pode-se encontrar outro em oposição a este, do rabino Eleazar: “Aquele que é Sagrado, abençoado seja, exilou os judeus entre as nações apenas para que se lhes acrescentassem convertidos” (Tratado Pessa’him). O judaísmo nunca foi monolítico, mas as circunstâncias sempre acabaram vencendo. (SAND. 2008).

A esse respeito, é difícil datar de maneira precisa cada uma das posições e cada um dos comentários compreendidos na Halakha. Pode-se propor uma hipótese segundo a qual o surgimento das expressões negativas sobre a conversão foi contemporâneo de tempos de marasmos, revoltas e perseguições, enquanto, em oposição, os períodos mais calmos de interação com o poder permitiram fortalecer as tendências à abertura e a sede de expansão. No final das contas, mais que a oposição pagã, foi, sobretudo, o advento do cristianismo, considerado uma perigosa heresia, que suscitou o redobrar da prudência em relação à conversão no discurso judeu. O triunfo final deste, no início do século IV, pôs termo ao fervor predicador do judaísmo nos principais centros culturais e originou uma tendência profundamente enraizada de querer apagar a memória dos anais judeus. (SAND, 2008, p. 181).

Sand quando se refere ao cristianismo como “uma perigosa heresia [judaica]” parece confirmar o cuidado judeu com o risco de uma acusação frontal. Pois judaico o cristianismo nunca foi, a despeito da história que se conta. Pelo menos, é assim que interpreto essa menção do historiador israelense. Uma deferência da ilha judaica ao oceano cristão. Em nosso Ocidente majoritariamente cristão e minoritariamente judeu, onde reinam as falácias religiosas, prudência é sempre aconselhável. A paixão e o ódio não são como o óleo e a água. Continuam misturados com o fervor de sempre e não se furtam aos exageros. Consonante a isto, a trama de interesses pela exploração política e financeira desse filão das fraquezas humanas progride a passos largos em determinadas sociedades, como no caso das nossas.

Referências:

A religião percebida como um instrumento político é bem diferente de quando é percebida como um instrumento de aperfeiçoamento moral. A tendência é que ela seja apreciada preferencialmente pela segunda possibilidade. No entanto, é sob o ponto de vista secular que faço essa reflexão a respeito da origem do cristianismo. Embora as notícias históricas que utilizo procedam da historiografia oficial, foi com base em fatos negligenciados que cheguei a uma conclusão significativa que deve ser compartilhada.
                                                                                                                                                     Ivani Medina

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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Mito e História

                                        Mito e História

Jesus Cristo é mesmo um mito. É preciso que se diga, antes de tudo, que o cristianismo nunca foi uma simples religião procedente de gente modesta, como se apregoa. O cristianismo tem outro nome, um nome mais técnico no âmbito da história: nova cultura. É isso mesmo, uma nova cultura que se impôs ao mundo antigo. O surgimento de uma nova cultura tem implicações que fogem às possibilidades de um pequeno grupo de indivíduos simples e bem intencionados. Para se compreender melhor o que se passou é preciso separar a filosofia da história. A filosofia está ligada a necessidade do Homem de superar a si mesmo. A história, por sua vez, depois do iluminismo, pretende se colocar como ciência, investigando e documentando o tortuoso caminho do Homem sobre a Terra. As experiências passadas têm grande utilidade na compreensão do presente e podem servir de referência a um bom encaminhamento do futuro.
Desde o século IV, a nova cultura assumiu a educação e o ensino por intermédio do estado. A história religiosa tornou-se a história oficial e a autoridade religiosa fiscalizava rigorosamente a sua deliberação. Jesus Cristo era uma figura “histórica” e o Novo Testamento a sua fidedigna comprovação. “Somente o colégio dos pastores tem o direito de dirigir e governar. A massa não tem direitos, a não ser o de deixar-se governar qual um rebanho obediente que segue o seu pastor.” Papa Pio X (1835-1914). Hoje, ao homem comum, esta declaração pode parecer extremamente arrogante, mas para o historiador não. O emérito historiador e professor da Sorbonne, Henri Irénèe Marrou (1904-1977), aconselhou aos futuros historiadores: “O historiador não avança sozinho ao encontro do passado. Aborda-o como representante do seu grupo.” Que grupo é esse? A nossa sociedade cristã. O professor Marrou era um fervoroso cristão. Portanto, desde o século IV o ensino e o estudo da história estão submetidos à nova cultura, que já não é tão nova assim.
Toda documentação histórica encontra-se desde aquela época sob a guarda da nova cultura que fez dela o que bem quis. Depois de dois mil anos, é incrível que nada além de Tácito, Plínio o Jovem, Suetônio e Flávio Josefo (reconhecidamente adulterado) puderam ser apresentados? O Talmude é uma obra tardia cuja preocupação era falar mal de Jesus para proteger o judeu menos culto da catequese cristã. Não existe nada a respeito de Jesus nem sobre o chamado cristianismo judeu fora da história cristã. A suposta documentação romana entre 110 e 120, segundo século, chamam atenção pelo contraste que a importância de Jesus assume para posteridade diante da sua inexistência para os registros da época em que supostamente teria ele vivido, assim como pela distância dos “fatos”. “E a sua fama correu por toda a Síria, e traziam-lhe todos os que padeciam, acometidos de várias enfermidades e tormentos, os endemoniados, os lunáticos e os paralíticos, e ele os curava. (Mt 4, 24)E seguia-o uma grande multidão da Galiléia, de Decápolis, de Jerusalém, da Judéia, e de além do Jordão. (Mt 4, 25) Imagine-se esse atendimento no seio de uma população carente de hospitais e cuidados médicos básicos. Nenhum personagem histórico com esse perfil desaparece tão completamente da memória afetiva do meio social no qual ele teria se formado. Isso não existe.
A história foi obrigada a mentir (e continua mentindo) para proteger uma filosofia bonita. Mircea Eliade (1907-1986), um dos mais respeitados historiados da religião, diz que na Antiguidade os deuses pertenciam ao tempo mítico onde nada o precedia. Esse tempo sagrado era resgatado pelo homem religioso nas festas sagradas, quando ele se tornava contemporâneo dos deuses criadores. Mas o cristianismo resolveu inovar o conceito de tempo sagrado, ao afirmar a historicidade de Jesus Cristo. O deus cristão não mais se desenvolveu no tempo primordial como todos os seus predecessores, mas no tempo histórico, no tempo cronológico. Ousadia demais para um simples ato de vontade. Por que então essa inovação? Por causa de uma parte da história que não foi contada, mas nem por isso desapareceu dos livros, como Jesus Cristo das páginas do judaísmo. O poder da cultura dominante é imensurável.
No primeiro século da Era Comum estourou um violento confronto cultural entre gregos e judeus. O motivo disso vinha se avolumando há séculos, porque os judeus se recusavam a participar do ideal universal helenístico que propunha a integração de toda Humanidade num único povo. Eles queriam continuar judeus, praticando as suas tradições e crenças. Não se casavam com estrangeiros nem participavam das festas nas cidades que residiam, cidades gregas, diga-se de passagem. Essa afronta se transformou num ódio e num bem cultural grego. Para os gregos antigos odiar não era feio e era uma obrigação compartilhar do ódio da sua comunidade. Para agravar a situação, no primeiro século os judeus proliferavam assustadoramente e o proselitismo deles ganhava adeptos junto aos gregos menos favorecidos. O perfil da sociedade helênica da Era clássica, no qual as distinções sociais não eram tão perceptíveis, tornara-se muito diferente na Era helenística com o surgimento de classes ricas, cultas e ostentosas por causa da influência do luxo oriental. Os deuses das cidades nada faziam pelos gregos menos favorecidos. Na cultura helênica religião era coisa de mulher e escravo, uma válvula de escape para os segmentos menos favorecidos daquelas sociedades paroquiais. Mas o deus de Israel era diferente. Por intermédio do Antigo Testamento ele prometia bom sucedimento aos que cumprissem as suas leis. Exatamente como é hoje. Jamais os gregos permitiriam que o mundo se tornasse judeu. Eles precisavam reverter àquela situação de qualquer jeito. Sentiam-se de fato e de direito os verdadeiros tutores da Humanidade. A solução foi criar um antídoto contra o judaísmo, forjando um acesso histórico ao direito de utilização do Antigo Testamento. Daí surgiu o judaísmo grego o cristianismo com o seu judeu mitológico (Jesus Cristo) para salvar e unir toda a Humanidade de acordo com o antigo ideal universal helenístico. Não é à toa que a igreja patrística era toda grega, nunca foram encontradas evidências arqueológicas do chamado cristianismo judeu no judaísmo, não existe o nome de um único judeu na alegada transição do cristianismo para o mundo helênico.
A história e a filosofia religiosa tornaram-se quase inseparáveis por estes motivos, reforçados por Agostinho de Hipona com a sua filosofia da história. Jesus Cristo é a fachada de uma filosofia que reúne sabedorias do acervo moral da Humanidade, conquistado à custa de muito sofrimento da espécie humana. É ciência pura, ciência interna. Ciência significa conhecimento e o conhecimento religioso é muito praticado e pouco comentado. Daí os abusos. Não existe uma ciência religiosa e uma ciência profana, aliás, teologia significa “estudo das ciências dos deuses” dos conhecimentos deles. Só se fosse nesse sentido. No entanto, o medo e a sede de domínio acanalharam tudo. Viraram tudo do avesso para impor absurdos. Kosmas Indikopleustes, comerciante de Alexandria que se tornou monge cristão, século VI, inventou que a Terra era plana e quadrada, quando há muito a sua esfericidade era conhecida. Os homens da ciência tinham que reclamar, mas por causa da filosofia bonita eles foram tachados de feios. Assim sendo, até hoje, quem busca o esclarecimento é visto como um inimigo da fé, da família e dos bons costumes. Todavia, logo logo essas paliçadas psicológicas serão desmontadas pela inexorabilidade do tempo. A história é uma ciência que pode reconstruir o passado como a carpintaria pode reconstruir uma casa muito antiga, analisando o tipo de madeira, os encaixes, as marcas de ferramentas etc. e chegar a conclusões surpreendentes sem a intenção de ofender ninguém.