O tempo cobra
Cristianismo e
ficção
Que o cristianismo seja
uma lenda já ficou bem claro, inclusive a muitos cristãos. No entanto, o que falta entrar na cabeça de muita
gente é o motivo político da sua origem, que, por sinal, nada tem a ver com
Constantino (século IV). A lenda do cristianismo do século I (Jesus Cristo, apóstolos etc.), inventada pelos cristãos do século II (antes não havia), foi a pior
desculpa que a nova cultura religiosa poderia ter arranjado em sua pretensão
histórica. Essa solução encontrada com o objetivo de sustar a influência e
substituir em importância o judaísmo nos primeiros séculos poderia ser cobrada
posteriormente com um preço muito elevado aos futuros devotos, exatamente como
está sendo atualmente. Fé é uma coisa, história é outra. Posso estar sendo
anacrônico no que vou dizer, mas a audácia de terem atribuído uma origem
judaica ao cristianismo se explica pela necessidade, contudo, os seus
fundadores deveriam saber que um dia isso ia aparecer.
“[...].
Porque não há coisa alguma escondida, que não venha a ser manifesta: nem coisa
alguma feita em oculto, que não venha a ser pública”. (Marcos 4: 38-21)
Pior ainda é a fábula estúpida
de que Deus teria rompido com os judeus porque estes mataram o seu filho
unigênito, O Salvador da Humanidade. Crime mais hediondo não poderia haver. A
partir de então, consternado, Deus teria estabelecido uma Nova Aliança com os
cristãos e passou a estes o direito aos livros sagrados dos judeus e a responsabilidade
da condução da humanidade.
Ora,
Jesus Cristo foi inventado pela ortodoxia cristã, basicamente, com o propósito
de legitimar esse roubo. Aliás, a ortodoxia cristã muito se empenhou na
“historicidade” da personagem no correr dos séculos. Eis o gato escondido com o
rabo de fora. Nada mais ridículo do que isto ter sido aceitado como história. A
intenção escrachada de insuflar o ódio contra os judeus permeia o Novo
Testamento pelo receio de que o mundo antigo judaizasse. Essa é a parte que a história
se esqueceu de contar debaixo da tutela cristã. Portanto, o conceito de Deus
teve que ser judeu porque este já havia se universalizado nos primeiros séculos
e não dava mais para mudar.
O pensamento marxista muito
contribuiu em detrimento de uma visão histórica mais limpa quanto à origem do
cristianismo. A ideia de que Jesus personificava um movimento socioeconômico
que havia sublevado o proletariado, no século I, e teria sido explorado pelos
judeus mais ricos que abusavam dos pobres, é a fantasia política em oposição à
religiosa. A história que se danasse, pois não pode se defender sozinha. Entendimento
que ainda prevalece nos dias de hoje e só atrapalha a percepção dos fatos.
Influenciado por tais ideias, um autor que se serve do
pseudônimo La Sagesse, cujo e-book circula há muito na Internet, chegou a
seguinte conclusão: “Idealizaram o cristianismo que, baseado no primarismo da
maioria, deu novo alento ao judaísmo, criando assim, o capitalismo e a
espoliação internacional. [...]”. Melhor “ópio do povo” e estratagema dos
aproveitadores judeus do que uma farsa histórica que a ninguém interessava.
É aí que alguns, ingenuamente,
levantam a questão: Por que os judeus não se manifestaram dizendo que o
cristianismo foi uma farsa montada para combater o avanço do judaísmo nos
primeiros séculos?
Em primeiro lugar, quem
conta a história é o vencedor, e reconhecer (o que não significa aceitar) uma
derrota é sinal de inteligência. O judaísmo continuou existindo dentro de
sociedades cristãs armadas contra ele e, para aquelas, o importante é que
outros não comprometessem sua versão oficial [Bíblia] com indiscrições
históricas. Em segundo lugar, é que aquele fervor proselitista do passado
derrotado pelo cristianismo, além de ser uma lembrança desagradável, cuja
repercussão jamais lhes deu sossego, foi trocado pela opção mais útil do
fortalecimento de uma identidade nacional que alimentaria o sionismo político,
no século dezenove. Naquela época, a situação dos judeus na Europa se complicava
a cada dia, especialmente no leste europeu. Só mesmo com uma identidade poderosa
a sustentar uma forte união poderiam enfrentar tal situação.
A lenda da descendência
dos hebreus, que embalava seu passado mítico de “povo eleito” de linhagem
direta, era conflitante com a realidade histórica, nada magnânima, de
convertidos de toda parte que tinham em comum apenas uma prática religiosa.
Assim, o proselitismo de outrora se tornou desinteressante, chegando mesmo a
ser negado para o bem das “memórias milenares”. Como toda crença religiosa é
pura invenção, “Quem tem telhado de vidro não atira pedras no telhado do
outro”. Já se dizia. Sem interessar a judeus, cristãos e nem a marxistas essa
parte da história caiu no “esquecimento”.
O historiador
israelense, Shlomo Sand, comenta que aparentemente por volta do século IV da
Era Comum, o rabino Chelbo havia estabelecido o preceito de que “os convertidos
são para Israel como a psoríase [incômoda doença de pele]” (Tratado Yevamot).
Já no Talmude pode-se encontrar outro em oposição a este, do rabino Eleazar:
“Aquele que é Sagrado, abençoado seja, exilou os judeus entre as nações apenas
para que se lhes acrescentassem convertidos” (Tratado Pessa’him). O judaísmo
nunca foi monolítico, mas as circunstâncias sempre acabaram vencendo. (SAND.
2008).
A
esse respeito, é difícil datar de maneira precisa cada uma das posições e cada
um dos comentários compreendidos na Halakha. Pode-se propor uma hipótese
segundo a qual o surgimento das expressões negativas sobre a conversão foi contemporâneo
de tempos de marasmos, revoltas e perseguições, enquanto, em oposição, os
períodos mais calmos de interação com o poder permitiram fortalecer as
tendências à abertura e a sede de expansão. No final das contas, mais que a
oposição pagã, foi, sobretudo, o advento do cristianismo, considerado uma
perigosa heresia, que suscitou o redobrar da prudência em relação à conversão
no discurso judeu. O triunfo final deste, no início do século IV, pôs termo ao
fervor predicador do judaísmo nos principais centros culturais e originou uma tendência
profundamente enraizada de querer apagar a memória dos anais judeus. (SAND, 2008, p. 181).
Sand quando se refere
ao cristianismo como “uma perigosa heresia [judaica]” parece confirmar o
cuidado judeu com o risco de uma acusação frontal. Pois judaico o cristianismo
nunca foi, a despeito da história que se conta. Pelo menos, é assim que
interpreto essa menção do historiador israelense. Uma deferência da ilha
judaica ao oceano cristão. Em nosso Ocidente majoritariamente cristão e minoritariamente
judeu, onde reinam as falácias religiosas, prudência é sempre aconselhável. A
paixão e o ódio não são como o óleo e a água. Continuam misturados com o fervor
de sempre e não se furtam aos exageros. Consonante a isto, a trama de
interesses pela exploração política e financeira desse filão das fraquezas
humanas progride a passos largos em determinadas sociedades, como no caso das
nossas.
Referências:
A religião percebida como um instrumento
político é bem diferente de quando é percebida como um instrumento de
aperfeiçoamento moral. A tendência é que ela seja apreciada preferencialmente
pela segunda possibilidade. No entanto, é sob o ponto de vista secular que faço
essa reflexão a respeito da origem do cristianismo. Embora as notícias
históricas que utilizo procedam da historiografia oficial, foi com base em
fatos negligenciados que cheguei a uma conclusão significativa que deve ser
compartilhada.
Ivani
Medina
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